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No episódio nº 027 Cassia Cavalheiro lê Beijo na Face de Conceição Evaristo

 


Cássia Cavalheiro é natural de Bagé, tem 29 anos e reside em Pelotas há 6 anos. É uma mulher lésbica, malabarista, oficineira e produtora cultural. Possui Especialização em Artes formação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Pelotas. Foi idealizadora do projeto ArtCidade Criativa com o qual foi contemplada com o Premio Reconhecimento pela Cultura Popular em Pelotas em 2014 e indicada ao Premio Brasil Criativo em 2015. É co-fundadora da Casa Cultural Las Vulvas onde desenvolve um trabalho voltado aos direitos culturais,protagonismo de mulheres e visibilidade LGBT. Realiza pesquisas nas áreas da relações internacionais, história das mulheres, sexualidade, arte, espaço público e privado. 

 

BEIJO NA FACE - Conceição Evaristo

Salinda tombou suavemente o rosto e com as mãos em concha colheu, pela milésima vez, sensação impregnada do beijo em sua face. Depois, com um gesto lento e cuidadoso, abriu as palmas das mãos, contemplando-as. Sim, lá estava o vestígio do carinho. Algo tão tênue, como os restos de uma asa amarela, de uma borboleta-menina, que foi atropelada nos primeiros instantes de seu inaugural voo. Rememorou ainda o corpo que um dia antes estivera em ofertório ao seu lado. Tudo parecia um sonho. Os toques aconteceram carregados de sutileza. Carinhos inicialmente experimentados apenas com as pontas dos dedos-desejos. Ela estava aprendendo um novo amor. Um amor que vivia e se fortalecia na espera do amanhã, que se fazia inesperadamente nas frinchas de um momento qualquer, que se revelava por um simples piscar de olhos, por um sorriso ensaiado na metade das bordas de um lábio, por um repetir constante do eu te amo, declaração feita, muitas vezes, em voz silenciosa, audível somente para dentro, fazendo com que o eco dessa fala se expandisse no interior mesmo do próprio declarante. No princípio, a aprendizagem lhe custara muito. Acostumada ao amor em que tudo ou quase tudo pode ser gritado, exibido aos quatro ventos, Salinda perdeu o chão. 2 Habituada ao amor que pede e permite testemunhas, inclusive nas horas do desamor, viver silente tamanha emoção era como deglutir a própria boca, repleta de fala, desejosa de contar as glórias amorosas. E por que não gritar, não pichar pelos muros, não expor em outdoor a grandeza do sentimento? Não, não era a ostentação que aquele amor pedia. O amor pedia o direito de amar, somente. Salinda tentou guardar em si as lembranças e retomar a rotina. Era preciso viver a calma e o desespero como se nada estivesse acontecendo. Havia quase um ano que a felicidade lhe era servida em conta-gotas. Pequenas gotículas que guardavam a força e a parecença de reservatórios infindos, de represas de felicidade inteira. Mesmo estando entupida de alegria, com uma canção a borbulhar no peito, Salinda precisava embrutecer o corpo, os olhos, a voz. Estava sendo observada em todos os seus movimentos. A vigilância sobre os seus passos pretendia, se possível, abarcar até seus pensamentos. Ela, que até então fora sempre distraída, teve de aprender a prestar atenção a tudo e a todos. A mulher ou homem que estivesse assentado ao seu lado no ônibus poderia ser o detetive particular que o seu marido tinha contratado para segui-la. Ao se lembrar do marido, Salinda foi até ao quarto desfazer a mala, que estava ali abandonada desde manhã. Tinha ido até Chã de Alegria, deixar as crianças de férias com a tia. Era para aquela cidade que viajava sempre com os filhos. Além da ida ao trabalho, Salinda não podia sair só. Os filhos, sem saber, tinham sido transformados em vigias da mãe. A viagem de regresso, que ela fez sozinha, foi controlada desde o momento em que deixou a casa da tia. No princípio, logo que começou a ser vigiada, chegou a pensar que estivesse sofrendo de mania de perseguição. Confirmou, porém, que estava sendo seguida, quando, numa noite, o marido, julgando que ela estivesse dormindo, falava alto na sala ao lado, e sem querer ela ouviu todo o teor da conversa. Ele pedia notícias de todos os passos dela. Depois a confirmação foi se dando pelas notícias que ele trazia. Ela tinha sido vista em tal e tal lugar. Salinda entendeu o comportamento do marido. Estava a vigiá-la, mas em vez de de agir em silêncio, vinha de própria voz alertá-la. Era como se ele buscasse retardar um encontro com a verdade. Aos poucos, as ameaças feitas pelo marido, as mais diversificadas e cruéis, foram surgindo. Tomar as crianças, matá-la ou suicidar-se deixando uma carta culpando-a. Salinda, por isso, vinha há anos adiando um rompimento definitivo com ele. Tinha medo, sentia-se acuada, embora às vezes pensasse que ele nunca faria nada, caso ela o deixasse 3 de vez. Aprendera, desde então, certas artimanhas, sondava terreno, procurava saídas. Aos poucos, foi se fortalecendo, criando defesas, garantindo pelo menos o seu espaço íntimo. Tia Vandu, em Chã de Alegria, foi a única pessoa que adivinhou o sofrimento de Salinda, acolheu seu segredo e se tornou cúmplice. Era na casa da tia que os encontros aconteciam. De noite, depois das crianças, desconhecendo o que se passava com a mãe, dormirem, Salinda, no quarto destinado a ela, podia se dar, receber, se ter e ser para ela mesma e para mais alguém. Tia Vandu era guardiã do novo e secreto amor de Salinda. Salinda desfazia a mala relembrando o seu regresso de Chã de Alegria. Voltava para casa trazendo lembranças entalhadas na memória. Jogou algumas roupas no tanque; outras, ainda úmidas do desejo que brincava nos corpos amantes; para essas, ela inventou um esconderijo. Queria a preservação do tesouro, que as peças mofassem sob a ação do tempo íntimo de sua esperança. Havia dois tempos fundamentais na vida de Salinda: um tempo em que o marido estava envolvido e cada vez mais se diluía e o tempo em que o novo amor se solidificava. Daí a uns minutos, o homem chegaria, poderia vir calmo, amigo como nos bons tempos de namoro e ainda durante alguns anos de casada. Sim, tinha sido dele, o lugar do cálido amor de adolescente. Foi ele a primeira pessoa que a tornou apta e ávida para todos os demais amores que ela veio a ter. Podia chegar também amargo, agressivo, infeliz, querendo arranhar a face da felicidade dela. Vinha então com as perguntas de sempre: o que ela fizera durante os anos em que, ainda solteiros, terminaram o namoro e se separaram? Quem era o homem, pai da primeira filha dela? Por que, depois de tanto tempo afastada, ela aceitou voltar e se casar com ele? E assim, aos poucos, Salinda foi percebendo que nunca deveria ter assumido novamente uma relação com ele. Reconhecia, entretanto, que antes, tanto na época do namoro da juventude como na do próprio casamento, eles haviam experimentado tempos felizes. A mala ia sendo desfeita lentamente enquanto tempos distintos amalgamavamse em suas lembranças. A imagem dos filhos voltou à sua mente. Estavam de férias, e a melhor companhia para eles no momento era, sem dúvida, a Tia Vandu. Um misto de tiaavó, mãe e amiga. A casa sem as crianças tinha o silêncio que brincava matreiramente nos cômodos. A ausência de qualquer som transportou-a novamente para os poucos dias vividos em Chã de Alegria. No dia anterior, tinha levantado cedo guardando no rosto e no 4 corpo as marcas do encontro vivido na noite. Feliz,cantou, soltou a voz pelas terras de Chã de Alegria. As crianças acordaram ao som da ave-mãe que não estava presa na gaiola. A mais velha, menina se maturando mulher, olhou Salinda nos olhos e sorriu. Ela recolheu o sorriso da filha e percebeu na atitude da menina uma possível cumplicidade, que esperançosamente guardou e aguardou poder realizar um dia. Distraída em desarrumar a mala e em reviver várias lembranças, Salinda não percebeu o avançar das horas. Quando deu por si, já era noite. Estranhou o silêncio e a ausência do marido. Ele não tinha ido buscá-la na rodoviária, mas, assim que ela chegou, recebeu um telefonema dele dizendo que estava na casa da mãe. Ela, admirada, gostou. Depois de longos anos, ia poder ficar sozinha. Havia uns cinco anos, desde que ele desconfiou dela com um colega de trabalho, um inferno na relação dos dois havia se instaurado. Das perguntas maldosas feitas de maneira agressiva surgiu uma vigilância severa e constante, que se transformou em uma quase prisão domiciliar. Ela respondeu com um jogo aparentemente passivo. Fingiu ignorar. Era apenas uma estratégia de sobrevivência. Ensaiava maneiras de se defender aguardando que as crianças crescessem um pouco mais. Quando foi iniciado o cárcere doméstico, a menina que ele havia assumido como filha desde os onze meses tinha treze anos. Mas por que o marido estava demorando tanto? Ela começava a se atormentar. O que estava por trás daquela ausência tão silenciosa? O que tinha acontecido? O que estava para acontecer? E sua vida secreta? Será que o segredo havia sido descoberto de alguma forma? Salinda tinha viajado com as crianças. Sair com os filhos não levantava suspeição alguma. E, quando qualquer desconfiança acontecia, o marido aplicava as suas táticas interrogativas. As crianças eram conclamadas a falar exaustivamente sobre o passeio. Inocentemente narravam tudo, felizes por estarem conversando com o pai. Salinda se lembrou das ameaças do marido. Preferiu desacreditar que ele tivesse coragem suficiente para qualquer decisão. Entretanto, não se tranquilizou, alguma coisa estava acontecendo. Levantou aflita procurando os cigarros. Buscou uma caixa fósforos que deixou cair no chão. O ligeiro barulho da caixa caindo no solo retumbou como uma bomba atômica, e Chã de Alegria se desenhou em sua mente. Tinha ido ao circo com as crianças em um dos dias que ficara na casa da tia. Estava mais entusiasmada do que elas. Bem cedo, quando a manhã ainda estava no nascedouro, ela gozou antecipadamente a doce aflição que sentiria à tarde ao deparar-se com o equilibrista. No circo, o momento 5 que Salinda mais gostava, era o de vigiar a acrobacia do bailarino na corda bamba. Naquele dia, quem se apresentava era uma mulher. Salinda vigiou os passos cambaleantes da moça tentando se aprumar sobre um tão fino e quase imperceptível fio. Ela sabia que, qualquer passo em falso, a mulher estaria chamando a morte. Por um momento pediu para que tudo se rompesse. E, como equilibrista, ela mesma sentiu um gosto de morte na boca, mas logo se recuperou mordendo novamente o sabor da vida. Seu hálito ainda estava impregnado do amor vivido na noite anterior. Levantou-se acompanhando com gosto o jogo da dançarina na fugaz linha da vida. A mulher cambaleava, titubeava no espaço. Ia cair? Recuperou-se em seguida, com um passo-gesto redondo, próprio e justo, no fino fio estendido sob seus pés. O público aplaudiu. Vozes infantis norteavam a alegria dos demais. Salinda saiu vitoriosa do circo. A ausência e o silêncio do marido continuavam. O telefone tocou. Levantou preparada, sabia que era ele. Do outro lado do fio, com uma voz forçosamente calma, o marido anunciou que já sabia de tudo. Perguntou se ela havia esquecido que os olhos da noite podem não ser somente estrelas. Outros olhos existem; humanos vigiam. E riu debochando do descuido dela e da tia. Disse ainda que não queria vê-la nunca mais, mas era bom ela ir se preparando para uma guerra. Não ia matá-la. Não ia cometer suicídio. Mas ia disputar ferrenhamente os filhos. Ele queria os filhos, todos. Ah, queria!... Salinda recebeu o golpe com a cabeça erguida. Sua voz não podia demonstrar nenhum temor. Batalhas viriam, piores, mais cruéis que as anteriores. Sentiu, porém, certo alívio. A verdade tinha sido apresentada, por pior que fosse a dor. O que fazer? Que cuidados e providênciastomar no momento? A quem recorrer? E as crianças? Não, ela não ia desistir delas. Seus filhos eram uma opção que ela fizera para sempre. Sentiu-se desesperadamente só. Quis ligar para Tia Vandu, ponderou, entretanto, que seria melhor esperar um pouco. À noite, as crianças sempre ligavam para casa quando estavam por lá. Agora mais do que nunca precisava do abrigo-coração da velha. Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E, no lugar de sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava 6 na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória.

EVARISTO, Conceição. Beijo na face. In: EVARISTO, Conceição. Olhos D’Água. Rio de Janeiro, 2022, p. 51-57.

 

 

VER.SAR é um podcast com artistas convidadas a compartilhar leituras de textos sobre práticas artísticas, maternidades e feminismos.
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Curadoria: Priscila Costa Oliveira

Apresentação: Priscila Costa Oliveira e Maria Flor

Convidada: Cassia Cavalheiro

16 de agosto de 2019

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