No episódio #028
Patrícia Galelli lê Elvira Vigna
No episódio de nº 028 Patrícia Galelli lê Elvira Vigna
Patrícia Galelli é escritora, jornalista e artista-pesquisadora. Publicou os livros Carne falsa (Editora da Casa, 2013), Cabeça de José (Editora Nave, 2014), que recebeu o Prêmio Elisabete Anderle de Incentivo à Cultura em 2013, da Fundação Catarinense de Cultura (FCC), Gávea (selo Formas Breves/e-galáxia, 2014) e o livro de artista Um bicho que (Miríade Edições), com primeira edição em 2015 e segunda edição em 2016. É mestre em Processos Artísticos Contemporâneos (Artes Visuais-Udesc).
Morrendo de rir, minha vida de intelectual
Porto Alegre, 25/10/2012(publicado em agosto/2016 pela revista pessoa)
Olha, só avisando. Um mau-humor desgraçado. E claro que é culpa do Temer, de quem mais. Pincipalmente, pelo menos. Então escolhi o assunto: vou falar mal de homem em geral e não do Temer, o próprio. A ‘Pessoa’, afinal, é literária e homem é o que mais tem no meio literário. Então aqui estarão literatos (o que exclui o Temer: gente, que versinhos são aqueles!) e, pra completar as mal traçadas, jornalistas e publicitários, um povo que se não é literato é porque não conseguiu. Porque querem, é o que mais querem. Mas sem mudar a cabeça e sem desagradar “clientes”, né. E mais, ahn, deixavê, bem, vou botando aqui, que nem linguiça, opa, nem sei porque me veio essa metáfora, mas agora ela já se impôs: vou botando gente aqui então, como lixo em linguiça, e se entrar quem não é do ramo, paciência, a linguiça (sem trema) lhes serve. Ora, dirão as estrelas, perdi o senso: tá cheio de mulher literata. Verdade. Mas o que eu queria é que a gente não fosse mulher-literata, só literata. E que jornalista desse notícia, só isso. E que publicitário se tocasse, só isso. E que o Temer… Mas sim. Começando. O primeiro.
E é, escrevo muito bem, começo pelo primeiro.
O cara que disse que ser escritor era legal porque pegava muita mulher e riu. Não fiz nada na hora, mas só sei que até hoje ele me olha alguns segundos a mais do que mereço, acho que pra tentar adivinhar se vou reagir imediatamente ou daqui a pouco. Foi daqui a pouco, Sérgio. Gostou?
Em segundo lugar vem o vaidoso do Ary Quintella, a quem tive a distração de editar na minha primeira editora a falir, a Bonde.
(Depois tive mais editoras falindo e mesmo agora, que acabamos de abrir a Uva Limão, acho prudente já botá-la, coitadinha, recém-nascida, na lista, porque não sei não.)
Voltando. Meu deus, como homem é vaidoso. Caceta. Aliás, acho que essa é outra palavra, como a linguiça, que eu não devia usar porque vai fazer com que fiquem mais vaidosos ainda. Nossa, né! Tão, mas tão impressionantes, que até viraram interjeição!
(No Rio, tem o bloco Trema na Lingüiça, fundado por poetas e professores indignados com a reforma ortográfica. Portanto, nada do que você estava pensando.)
Mas sim, onde eu estava? Na caceta. Não, no Ary. Que era desse tamanhinho, o Ary, mas sempre dava um jeito de me olhar de cima. Aí ele fez cara de, sei lá, Bogart? Vanitas, vanitas. Mas não é momento pra filosofia. O Ary. Fez caras, me apresentando o original, a mim, que ele desprezava porque, em ordem: eu era mulher; pior, era a mulher de um amigo dele, com quem eu brigava todos os dias (ou seja, não só não era comível, como era intragável); e obviamente não sabia o que estava fazendo nesses assuntos de homem (literatura). Sendo que no terceiro item ele tinha razão. Não sabia mesmo. Por exemplo: não devia ter editado o livro dele.
Mas, sim, o Ary. Me apresenta o original e faz cara bogartiana enquanto acende um cigarro e o cigarro cai no chão e eu na gargalhada e foi essa nossa história. Claro, depois nos encontramos outras vezes, eu era a editora dele, mas nunca mais deu liga.
O terceiro, deixovê o terceiro. Ah, sim. Claro, Porto Alegre, que dá título a esse “morrendo”. Uma mesa com mais dois, tempo de fala e tema previamente determinados. Eu a única mulher. O mediador olha o relógio, me constranjo e finalizo. Outro componente da mesa começa e diz que não vai aborrecer a audiência. Sai do assunto estabelecido e discorre longamente sobre a etimologia do verbo foder. Depois tinha um jantar. Sempre tem, nunca vou, não fui. Acharam que eu tinha ficado ofendida. Não. Fiquei só muito, muito cansada do mundo. No bar deserto do hotel comi, sozinha, uma omelete com pão e cerveja, e foi a melhor omelete com pão e cerveja da minha vida.
Agora o Josué Montello, na única vez até hoje que editor me convidou pra festa de editora: José Olympio. Fui contentinha. Achei que, agora sim, convidada e tudo, eu estava virando alguma coisa, o quê eu não sabia, mas só podia ser bom.
“E aí, professora, e seus livrinhos, estão vendendo bem?” – disse ele.
Nunca dei uma aula na vida. Tenho o maior respeito por quem dá, mas nunca dei. Na época eu fazia livro de criança, e livro de criança só pode ser coisa de professora, certo? Escritores eram o Josué e os outros ternos que se batiam nas costas uns dos outros. Eu era aquilo que alguns deles inclusive tinham em casa, mulher, e que vinha às vezes com esse apêndice, criança. Em editora, o apêndice supunha livros. Livrinhos. E era isso.
E teve o cara numa recepção do Itamaraty. Sim, fui. É, nunca vou. Sei lá porque fui. Só pode ter sido culpa do Roberto. Mas o caso é que estou lá naquelas mesas redondas em que cabem seis pessoas e já éramos cinco e aí chega esse cara, um editor, como vim a descobrir mais tarde e bota mais tarde nisso. Porque à pergunta inicial de “o que você faz?” o infeliz responde, olhar de cama, voz rouca, mão passando pelo meu braço:
“O que funcionar pra você.”
Soube depois quem era ele mas não qual a sobremesa. Saí arrastando um relutante Roberto que até estava gostando do vinho, e até hoje não sei o que perdi de docinhos.
E teve o lance da UPI, eu a melhor redatora mas sentando perto da porta. Veio um amigo do editor, outro Sérgio, e claro que ganhei um: “vê um cafezinho, querida.”
E teve o Chico, amigo total, irmão. Numa crise braba do jornalismo, uma das muitas, abre vaga na editoria dele.
“Vou chamar o fulano, né, Elvira, ele é homem, tem responsabilidade.”
Sendo que nessa ocasião eu já sustentava minha filha, sozinha.
Acho mesmo que vou dedicar esse “morrendo” ao Chico, que não vai ler porque continuo aqui, labutando, mas ele virou especialista em gastronomia e não lê besteira em revista literária que não paga ninguém porque não dá dinheiro. Aliás, gastronomia é só mais um campo profissional que atrai homem assim que começa a dar dinheiro, ou será o contrário, ao atrair homem começa a dar dinheiro. Ahn, faltou alguma linguiça?
Faltou. Faltou o repórter que queria me entrevistar pra uma revista feminina. Nem vou falar de existir revista feminina. Vou só falar do repórter que é pra vocês não ficarem de saco tão cheio quanto o meu e pararem de ler. Pois o repórter queria uma entrevista sobre as várias fases da vida da mulher e as tais fases eram: juventude, casamento, maternidade e velhice. Perguntei se as fases do homem eram punheta, estupor alcoólico, estupor tout-court e viagra.
Numa mesa em Belo Horizonte propuseram o tema “Literatura e experiência”. Não, nada sobre a transposição estética de experiências de vida. Experiência era eufemismo de velhice. Era sobre escritora velha, esse horror de todos os editores mundo afora. Mulher não pode ficar velha. Também não pode mandar no próprio corpo e, pra ser escritora, precisa sair bem na foto, conhecer seu lugar (o de ‘nicho’) e fazer charminho pra plateia/editor/jornalista. Aliás, mulher também ofende homem se for presidenta da república, né, quer mais o quê.
Tanto no caso da revista como no caso de Belo Horizonte, mandei à merda. Mas de maneira fina porque sou fina. Quase sempre. Só quando não dá mesmo é que não. Mas voltando porque tem mais.
Tem o prêmio em que meu livro foi descrito como de “rara agressividade no gênero” sendo que o gênero era o meu, feminino, e não o do livro, romance. Mas já falei disso.
E tem meu livro novo. Caró é de opinião que, toda vez que eu disser que o título do “Putas” é formado por dois versos heptassilábicos em cadência de redondilha maior, devo acrescentar que a redondilha vem nas opções cromo, couro e aço escovado. Só assim os carinhas da plateia vão prestar atenção no que falo. Não devia ter falado falo.
https://elvira.vigna.com.br/livintegral/livintpessoa/
VER.SAR é um podcast com artistas convidadas a compartilhar leituras de textos sobre práticas artísticas, maternidades e feminismos.
Este Podcast é uma plataforma de comunicação colaborativa que reúne mulheres artistas e seus referenciais textuais, a partir do exercício da leitura e busca criar um arquivo de consulta e compartilhamento gratuito de conteúdo relacionado às questões estruturais e conceituais implicadas em ser mulher na contemporaneidade. As artistas convidadas são mulheres que investigam e discutem os conflitos políticos da vida doméstica e pública produzindo pensamento crítico em nosso contexto e propondo mudanças significativas no mundo da arte.
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Curadoria: Priscila Costa Oliveira
Apresentação: Priscila Costa Oliveira e Maria Flor
Convidada: Patrícia Galelli
08 de outubro de 2019